A propósito da morte de Steve Jobs muito se escreveu sobre a sua genialidade e o design dos produtos Apple, sobretudo desde 1998, ano do lançamento do primeiro iMac.
Contudo, aquela que é, quanto a mim, a principal chave do sucesso da Apple na última década teve comparativamente muito pouco destaque. Falo, claro, do iTunes – não o leitor/gestor multimédia, mas sim da loja online com o mesmo nome, lançada em 2003.Importa recuarmos um pouco no tempo para nos lembrarmos como o iPod original foi uma pedrada no charco no início deste século. Até à chegada do primeiro iPod, os dispositivos portáteis de reprodução de áudio digital dividiam-se em dois grupos: os pequenos tinham muito pouca capacidade de armazenamento; e os que ofereciam capacidades da ordem dos gigabytes eram demasiado grandes. E todos eles eram difíceis de usar.
Com o iPod, a Apple resolveu de uma só vez estes problemas, ao oferecer um dispositivo elegante, pequeno, fácil de usar e com uma enorme capacidade de armazenamento – fruto de um acordo que a marca fez com a Toshiba, a quem comprou todo o stock de pequenos discos rígidos de 1,8’’ com 5 GB, deixando o resto do mercado sem capacidade de reacção.
Mas isto foi em 2001 e só em 2003 é que o iPod ganhou efectivamente tracção no mercado. Uma das razões prendeu-se com o facto de os primeiros modelos terem apenas uma interface FireWire, rara no mundo dos PCs, o que limitava a sua utilização. Mas a segunda razão foi o lançamento da iTunes Store em 2003, que efectivamente veio a mudar o mundo da tecnologia tal como o conhecemos.
O que a Apple fez com o iTunes foi transformar o que era até aí um produto do mundo da informática – o leitor de áudio digital – e transformá-lo num produto de electrónica de consumo. Nesse sentido, o iTunes é mais do que uma loja – é uma revolução.
Com o iTunes, Steve Jobes e Apple fizeram várias apostas que, na altura, estavam longe de ser “favas contadas”. A primeira, e talvez a mais importante, foi a de considerar que se fosse dada ao consumidor a possibilidade de adquirir “músicas” (por oposição a “álbuns” inteiros) a baixo preço e de forma simples e praticamente imediata, muitos seriam os possuidores de iPods que estariam dispostos a fazê-lo.
Ganha esta aposta, o resto, como se costuma dizer, é história. Mesmo admitindo que, com o tempo, surgiram no mercado melhores e mais baratos leitores de música digital, nenhum outro produto oferecia a experiência completa do iPod+iTunes.
Revolução, redux
A segunda parte da revolução chegou em 2007, com o primeiro iPhone. Uma vez mais, mesmo considerando que a Apple apresentou um dispositivo que, perante a sua concorrência, era ainda mais revolucionário do que o iPod (tanto mais que, ao contrário do que sucedera em 2001, em 2007 o mercado dos dispositivos móveis podia ser considerado como estando já num razoável estado de maturação e estabilidade), seria o iTunes a fazer a diferença.
O que a Apple faz com o iPhone foi muito mais do que apresentar um smartphone com uma interface revolucionária. O que fez foi alterar as regras do jogo. Como? Compare-se o iPhone original com o melhor terminal Nokia da altura, o N95, e o primeiro sai a perder se consideramos apenas as funcionalidades integradas no terminal.
Mas o que a Apple fez foi alavancar o iPhone com o iTunes, posicionando-o também como uma loja de aplicações. A ideia de que “There’s an app for that” (“há um programa para isso”) é, uma vez mais, genial. Neste sentido, o smartphone parte da ideia do computador – a máquina que sem software não serve para nada – para oferecer um dispositivo de electrónica de consumo que herda as virtudes do iPod de elegância e facilidade de utilização, mas juntando-lhes a potencialidades ilimitadas de um computador pessoal.
Enquanto isto, o resto da indústria, apanhada completamente de surpresa, perdeu anos (!) preciosos a emular a interface e mais tempo ainda a tentar replicar o conceito de loja online com aplicações capazes de aumentar a funcionalidade do dispositivo.
Não terá sido certamente por acaso que no mesmo ano de 2007 em que lança o iPhone, a Apple deixou de se chamar “Apple Computer Inc.” para passar a chamar-se apenas “Apple Inc.” A Apple é hoje muito mais do que uma empresa de informática. Ou, melhor dizendo, é a primeira empresa que pode assumir-se verdadeiramente como de “convergência”, no sentido da fusão entre os mundos da informática e da electrónica de consumo.
Assim fica bem mais fácil perceber porque é que o próximo mercado que a Apple pretende atacar seja a epítome da electrónica de consumo – o dos televisores. E se o pequeno dispositivo Apple TV se pode efectivamente considerar como um dos (poucos) fracassos da Apple nos últimos anos, um televisor Apple é algo bem diferente e que me deixa intrigado.
Se eu fosse responsável da Sony, da Samsung, da Panasonic ou da LG, mais do que intrigado, estaria preocupado. Porque todos nós já aprendemos que a Apple é uma empresa que não deve ser subestimada. E porque o iTunes pode bem vir a ser a peça que falta para criar o televisor do futuro.
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* Texto publicado originalmente no Fibra.
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