Em 1996, o então CEO da Intel, Andy Grove, escreveu um livro
chamado Only
The Paranoid Survive.(1) Nele Grove fala de como a sua empresa se viu
confrontada, nos anos 80, com um problema que, caso não fosse corretamente
abordado, a levaria à falência – muito embora isso, na altura, não fosse totalmente
óbvio.
Embora hoje olhemos para a Intel como um líder no desenvolvimento
e fabrico de microprocessadores, nessa altura o negócio da Intel passava
sobretudo pela produção de memórias. Grove conta como não foi fácil, numa altura
em que a produção de memórias era responsável pela fatia esmagadora do volume
de negócios da Intel, convencer a equipa de gestão de que, para sobreviver, a
empresa tinha de deixar esse produto de baixo valor-acrescentado e apostar tudo
num produto – o microprocessador – que estava na altura a dar os primeiros
passos.
Hoje, a Intel é uma das maiores e mais importantes empresas
de tecnologia, mas a história poderia ter sido bem diferente se os seus responsáveis
não tivessem identificado aquilo a que Andy Grove designa no seu livro de “Ponto
de Inflexão Estratégica” e, mais importante, não tivesse redefinido a sua
estratégia em função disso.
Desde 1996 que no mundo da tecnologia, que é aquele que
acompanho de perto desde os meus primeiros tempos de jornalista, já assistiu a
outros momentos semelhantes, mas o mais incrível não é isso: é a forma como tão
pouca gente com responsabilidades de gestão parece ter lido o livro de Grove e,
muito menos, assimilado os seus ensinamentos.
Os pontos de inflexão estratégica podem surgir de forma
gradual (por exemplo como aconteceu no setor do transporte marítimo, com o
advento da contentorização), de forma rápida (como assistimos no campo da
fotografia digital) ou fulminante (quando a Apple apresentou o iPhone e, num
momento, tudo mudou no setor dos smartphones).
Da mesma forma, estes momentos transformativos surgem quando
uma série de “peças” provenientes de diversos lados alteram de forma gradual,
mas inexorável, toda uma indústria, ou podem suceder quando um novo player
surge com um produto (ou ideia) tão transformativo que, por si só, tudo muda
(como a Apple e o iPhone).
Contudo, todos estes Pontos de Inflexão Estratégica têm uma
importante característica comum, qualquer que seja o setor de atividade em que
surgem: a alteração das regras do jogo é de tal forma grande que permite o
surgimento, muitas vezes do nada, de novos protagonistas que, muitas vezes, tomam
o lugar das empresas outrora líderes desse setor.
Quanto às “velhas” empresas, normalmente só há duas hipóteses:
um mudam, ou morrem. E, mesmo quando mudam, isso não garante que mantenham a posição
de liderança que tinham.
Porque é que não há “Tesla Killers”
Tenho acompanhado com grande interesse as mudanças no setor
automóvel e não escondo a minha estupefação pela quantidade de enormidades que ouço
e leio quase diariamente sobre a transição para a eletrificação do setor dos
transportes.
Já nem me refiro aos mitos sobre os automóveis elétricos ou
aos artigos de puro FUD (iniciais em inglês de Medo, Incerteza e Dúvida) acerca
do mundo das energias renováveis e do que é necessário fazer para mitigar e
inverter as causas que estão na base das alterações climáticas.
Provavelmente o que me deixa mais perplexo são as declarações
de sucessivos “responsáveis” (uso aqui o termo de forma cautelosa, pelas razões
óbvias…) de algumas das maiores empresas do setor automóvel relativamente ao
processo inexorável de eletrificação do setor em geral e sobre a Tesla em particular.
Vamos a ver se nos entendemos de uma vez por todas: para
quem ainda não percebeu, a indústria automóvel encontra-se no início de um
Ponto de Inflexão Estratégica, o qual, sendo previsível e inexorável no longo
prazo, foi antecipado e precipitado há cerca de 10 anos pela Tesla.
Efetivamente, ao contrário do que sucedeu com a fotografia
digital, em que foi o amadurecimento de uma tecnologia e a confluência de
produtos por parte de várias empresas que, num espaço de tempo relativamente curto,
alterou todo um setor (e deixou para trás empresas históricas como a Kodak ou a
Polaroid, por exemplo), o que está a suceder no setor automóvel é, sobretudo,
obra de uma e uma só empresa – a Tesla.
Se não fosse a Tesla, a vaga de mudança a que estamos a
assistir no sentido da passagem dos motores de combustão interna para a propulsão
elétrica não existiria. Mais: só não está a ser mais rápida porque os (ainda)
líderes do mercado têm feito, e continuam a fazer, tudo o que está ao seu
alcance para atrasar o mais possível estra transição.
Só assim se explica que o primeiro produto da Tesla, o
desportivo Roadster
lançado em 2008 (feito com base num chassis de Lotus Elise) oferecesse uma
autonomia de 320 quilómetros, um valor que, mais de 10 anos depois, continua a ser
visto como uma referência.
Desde esse momento, a Tesla tem continuado a lançar produtos
que oferecem funcionalidade e, crucialmente, autonomia, muito além daquilo que
empresas, algumas delas como mais de 100 anos de história, mostram ser capazes
de fazer.
O que nos leva a outro ponto importante: a Tesla, em rigor, não
é uma empresa do setor automóvel: é
uma empresa de tecnologia que, por acaso, também faz automóveis. A distinção
é importante, porque no mundo da tecnologia, um avanço de alguns anos
dificilmente consegue ser recuperado pelos seus concorrentes.
Tanto assim é que os produtos mais interessantes (de resto,
ainda não lançados no mercado) que podem de alguma forma concorrer com a Tesla
surgem de empresas também elas novas neste setor, como é o caso da americana Rivian ou da chinesa BYD.
É por esta razão que é simplesmente ridículo falar-se de “Tesla
Killers”. Pelo contrário, há empresas que, nos tempos mais próximos, irão ter
muitos problemas em sobreviver, precisamente porque não souberam, a tempo,
identificar o Ponto de Inflexão Estratégica da sua indústria e, pior ainda, parecem
apostadas em travar o mais possível aquilo que é uma alteração irreversível no
paradigma de uma indústria com mais de um século.
Não
há Tesla Killers. Mas há empresas que, caso não mudem rapidamente, poderão
vir acabar como a Nokia – um líder incontestado de mercado que acabou por morrer
porque não soube reagir à entrada de uma empresa que alterou as regras do jogo.
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(1) Já há uns anos, postei também aqui um artigo em que fazia referência a este livro, num outro contexto: https://techhoje.blogspot.com/2016/05/taxis-vs-uber-so-os-paranoicos.html
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(1) Já há uns anos, postei também aqui um artigo em que fazia referência a este livro, num outro contexto: https://techhoje.blogspot.com/2016/05/taxis-vs-uber-so-os-paranoicos.html
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